NOÉ BORDADOR DE CUIAS
Findava o ano de 1947, e o distrito de Boa
Esperança, hoje município de Colorado, já era o quinto distrito do extenso
município de Carazinho no Rio Grande do Sul.
Nas imediações do antigo distrito, morava Noé, cujo
sobrenome quase ninguém sabia e, por isso, era popularmente conhecido apenas
como Noé Bordador de Cuias.
Naquele tempo,
antes de Lei Afonso Arinos, nas mais diferentes localidades por onde se
andasse, era comum se presenciar a mais humilhante e vergonhosa discriminação
racial a ser imposta ao homem de cor negra.
Vivendo em tais circunstâncias, passando por certas
privações e constrangimentos, Noé era tratado pela sociedade com muita
indiferença, apesar de ser dotado de grande carisma. Mesmo assim, ele conseguia
ser comunicativo, apesar da discriminação, pois também era uma pessoa de grande
simpatia. E, onde estivesse, cativava grandes amizades ao aprimorar belíssimas
cuias de porongos para chimarrão, com o mais sofisticado trabalho de escultura
artesanal.
Mas, em seus momentos de folga, esquecia-se da
discriminação e se dedicava à sua verdadeira paixão: a música. Sentado sob um
pé de cinamomo, ou nos fundos de seu ranchinho de costaneiras, executava em sua
viola sertaneja, as mais belas melodias, dos mais diversos gêneros musicais que,
quase sempre eram destaques da época.
Noé Bordador, provavelmente tinha nascido na roça,
mas raramente era visto executando serviços braçais. Sobrevivia, entretanto, de
sua requintada arte de “bordar” os porongos das cuias, onde desenhava a fogo e
a faca os mais belos motivos campestres e urbanos que maravilhavam as pessoas
que os viam.
Andava Noé, a pé, de um lado para outro, fazendo
entregas do seu trabalho, e aceitando mais pedidos, sempre com um sorriso cativante
no rosto, indiferente ao que ouvia pelas costas: “eita nego nojento”. Noé
fingia que não escutava, pois sabia que se retrucasse, seria ainda muito pior.
Devido essas caminhadas pelas trilhas, atalhos e estradinhas,
era o maior conhecedor de toda aquela região do norte gaúcho. E, por onde andasse,
era recebido em algum hospitaleiro ranchinho com muito carinho por pessoas
(menos os racistas) que admiravam sua arte e seu bom humor. E, entre rodadas de
chimarrão, nas preciosas cuias que ele havia “bordado” com tanta maestria,
contava e ouvia histórias de assombrações, mulas sem cabeça e almas penadas.
Na época, a área territorial de um município, geralmente
era bastante extensa compondo-se algumas vezes, dependendo de seu tamanho, de
vários distritos que mais tarde viriam a separar-se da sede, salvo em raras
exceções, tornando-se independentes, com seus próprios governos
municipais.
O distrito de Boa Esperança era o quinto em ordem
numérica, dentro do município de Carazinho, e por isso possuía uma subprefeitura
e também uma subdelegacia de polícia, com cerca de três funcionários: um
subdelegado, um escrivão e um policial da brigada, os quais respondiam por
ambos os departamentos. Esse subdelegado, por atender duas funções, era nomeado
pelo prefeito do município, de quem recebia o aval total, exatamente por ser
altamente confiável. Podia efetuar prisões, penalizações estas, salvo algumas
restrições, que se aplicavam aos deploráveis ladrões de galinhas ou pessoas
pobres e humildes. Era responsável pela fiscalização de obras, recebimento de impostos,
autorização de licenças para festas ou eventos públicos, etc. Tinha, entretanto,
poderes de nomear auxiliares, conhecidos como inspetores de quarteirão, cujas
funções eram auxiliarem na segurança do distrito.
Boa Esperança, durante
mais de uma década, tivera como subprefeito e subdelegado, um cidadão de
princípios íntegros, que procurava agir sempre dentro das normas da Lei e da
justiça. Era dotado de uma rara habilidade de estar sempre bem informado com os
acontecimentos do mundo, tanto social como políticos, mantendo com isso uma
constante vigilância sobre tudo dentro de sua circunscrição. Usava, entretanto,
a cautela como arma principal, punindo quando necessário e aconselhando em
outros casos. Em algumas ocasiões, entretanto, agia com extrema energia,
aplicando as leis a seu belo prazer e de acordo com suas próprias convicções. Não
gostava de vadiagem ou festinhas e, serestas, só moderadamente, mesmo assim,
apenas em finais de semanas e dias santos, desde que para isso, tivessem sua
permissão.
Foi em uma bela manhã primaveril de sol radiante,
quando Noé Bordador de Cuias, todo feliz regressava de mais uma noitada
dançante, lá das bandas do Caríjo Velho, onde amanhecera ajudando a abrilhantar
um baile. Trazia em seu ombro esquerdo, amarrado em um barbante de barrigueira,
algumas lindas cuias já trabalhadas e em condição de serem comercializadas. Em
seu ombro direito, carregava alceada a sua companheira e inseparável viola e, em
seu coração, a felicidade e a satisfação do dever cumprido. Gravadas em sua memória,
as recordações das belas canções interpretadas durante a noite, lá no “surungo”,
quando indistintamente alegrara e emocionara a todos.
Falava consigo mesmo:
Mas, que tal,
um dia eu ainda me tornar o mais famoso seresteiro e ficar reconhecido por este
povo, que me ama, como um dos melhores cancioneiros deste país?
E, em seus
devaneios, continuava a impulsionar a sua imaginação. Pensava em chegar um dia,
à casa de seu amigo Jacó Munbach, em São João do Gramado e escutar através
daquele maravilhoso gramofone, trazido da Alemanha, uma música de sua autoria,
ou, quem sabe, com sua própria interpretação. Uma canção sertaneja, ou mesmo popular.
O que importava é que seria ele a compor e a cantar. Então, seria Noé,o homem
mais feliz do mundo.
Entretanto, ele não poderia prever o que o destino
lhe reservaria, mais adiante, ao cruzar pela vila de Boa Esperança.
No primeiro bolicho, resolveu parar para tomar um
fôlego. Entrou, puxou um banco e pediu que lhe servissem um trago de cachaça. Após
mais um trago, o comunicativo bolicheiro, solicitou que ele ponteasse e
cantasse com sua viola, a música italiana: La Verdinella.
- Já ouvi essa linda música ser cantada em festas
por aí a fora-. Comentou o Bordador de
Cuias. – Entretanto, eu, particularmente, nunca consegui aprendê-la.
Certamente, devido ao italiano que nossos queridos gringos trouxeram lá da
Europa conseguindo com isso, enriquecer ainda mais nossa cultura musical
brasileira. Por isso, não está em meu repertório. Mas, não tem problema. Eu
canto outra, que é um grande sucesso do momento. Letra e música de meu xará Noel
Rosa, intitulada Fita Amarela.
– Então não te “abichornes” índio velho e pregue
fogo. - Falou um recém-chegado, que se apoiava-se sobre o balcão.
Noé não se fez de rogado, e pegando sua inseparável
viola, começou:
“Quando eu
morrer, não quero choro nem vela, quero uma fita amarela gravada com o nome
dela”.
“Não quero
choro nem coroa de espinhos, quero samba com pandeiro, violão e cavaquinho”.
Subitamente, saindo do nada, assim como um duende, ouviu-se um grito atemorizador.
- O que está acontecendo aqui?
O susto foi
tão grande, que o coração do crioulo Noé quase lhe saiu pela boca. A voz rouca
e estridente, era do subdelegado, que ao passar pela rua escutou a cantoria
dentro do local.
- O que você
esta fazendo negro, com esta viola a essas horas da manhã em plena segunda-feira?
Se não tem mais nada a fazer seu vadio, pegue esse instrumento e siga na minha
frente em direção da subdelegacia. - Gritou o homem. - Não pense em correr, porque
daí o pior poderá lhe acontecer.
Obedecendo a voz de comando do enérgico caudilho, e
caminhando na frente, em passos largos, tomado de aflição, o crioulo não teve
tempo de refletir, sobre a grande asneira que
havia cometido. Noé sabia que o subdelegado não gostava de cantorias durante o
dia pelos bares ou botequins. Dobrou duas vezes à direita a fim de andar mais
uma quadra e então caminhar mais um pouco, para finalmente chegar à
subdelegacia. Escutou a ordem de fazer alto.
- Deita no chão de barriga para cima, seu negro
vadio. – Ordenou o subdelegado.
Sobre o pequeno gramado que existia na frente da
casa de madeira, com o sol forte a bater-lhe no rosto, não conseguia ver
direito o homem em pé ao seu lado.
- Cante agora, em voz bem alta, O Luar do Sertão. E bem afinado seu ordinário, senão vai engolir
essa viola. – Ordenou novamente o homem.
Centenas de metros do local podia-se ouvir a voz de
comando do caudilho e no fundo a voz rouca e chorosa de Noé Bordador.
- Mais alto negro, mais alto. E pare de desviar os
olhos do sol. Você está dando uma serenata para ele. Não esqueça. Gosta de
cantar de dia? Então aproveite e cante bem alto, – insistia o homem. - Agora, Palpite Infeliz. Duas vezes essa, pois
você está se despedindo de seu casebre para passar uma temporada fechado aqui
na cadeia.
Dos olhos de Noé Bordador, corriam grossas lágrimas,
que nada serviam para amenizar o violento subdelegado. As horas passavam e o
sol cada vez mais quente fazia o negro suar como se tivesse embaixo de uma
bica.
- Agora, Tristeza
do Jeca. Não desafine seu cachorro. Essa também, duas vezes. Finalmente o
subdelegado resolveu libertar o negro, com a promessa deste de jamais cantar em
horário de trabalho, pelos bares e bodegas da região.
- Se eu te pegar de novo, seu vadio, juro que mando
castrar você. Agora levante dessa grama e suma de minha frente antes que eu me arrependa
e mande te fechar na cela.
Depois desse acontecimento, jamais foi visto o músico
sonhador e artesão Noé Bordador de Cuias, tocando viola no bolicho da esquina. Mas,
era possível ser visto andando de um lado para outro, entregando suas cuias
artesanais, sempre alegre e expansivo, cumprimentando os amigos, desejando-lhes
um feliz dia de trabalho.
Voltando a Palmares
Pela paz, gerações se sucedem nos quinhentos anos,
Na esperança, alegria, tristeza sonhos e desenganos,
Na euforia de um povo que canta pra querer ser
feliz.
As razões serão sempre as mesmas neste meu país.
Liberdade ao homem de cor,
A Lei Afonso Arinos ecoou por aqui
Caminhando para um mundo de amor
Vamos voltar a Palmares
E outra vez Zumbi
Palmarinos que foram o símbolo da libertação,
Na pureza, canto e poder da inspiração
Na magia das asas de um pássaro que voou de mais
Alcançando talvez o infinito em busca da paz
“Escrito por Miguel Arnildo Gomes baseado na
história contada pelo saudoso musico gaúcho, Antônio Martins (Rancho Velho)”.