Cavalo bem encilhado, dois grandes
pelegos brancos, badana couro de Pardo, peitoral de duplos e resistentes couros
de Anta, cabeçada, cabresto e par de rédeas chatas produzidas também a partir
da pele de Tapir, e laço amarrado nos tentos. Ao chegar, amarrou seu pingo com
o cabresto do buçal sobre a forquilha da velha Aroeira, que fazia sombra ao
portão de tabuas do piquete dos terneiros. Boleou a perna e em passos largos
aproximou-se do rancho.
Da varanda da velha casa de madeira,
com também cobertura em tabuinhas de pinheiro, Hipólito e Mariazinha, podiam
observar o homem ir se aproximando. Chapéu de abas largas quebrado na testa,
sobre o pescoço lenço vermelho, além de bombacha, botas e tirador de couro de
Pardo, com longos flecos amarrado a cintura, bem a estilo dos campeiros da
época. Sobrando, se podia ver sob a bainha, a Adaga em cabo de chifre, com
folha de mais ou menos palmo e meio, que pela aparência deveria ser da marca
Coqueiro. Vinha arrastando as esporas, ao chegar, tirar o chapéu e emitir um
leve sorriso. Pronunciou apenas um educadamente “Buenos dias”, quando o proprietário senhor João, ao responder o
cumprimento ainda solicitou, “Te
aprochegue seu”, “puxe o banco e
permaneça à vontade”. Após algumas cuias de mate, ampla refeição de arroz e
feijão com charque, além de mandiocas fritas, seguidas de leite com coscos. A
seguir, senhor João aperou cuidadosamente seu cavalo, montou e saiu ao tranco,
ao lado do recém chegado, conversando moderadamente, pois era ele pessoa um
tanto esclarecida, que apesar de interiorano, costumava fazer inveja a muitos
indivíduos do povoado. Talvez pela postura e maneira fácil como que se comunicava.
Quando constantemente, procurava viver bem informado, de tudo o que ocorria em
seu mundo, bem como em além fronteiras, sendo assinante de um dos mais
tradicionais e conceituados jornais do estado. Quando estes vindos da capital,
conseguiam chegar ao destino, até com dois dias de atraso, quando o senhor João
ordenava a um guri, ao atravessar o rio através da Balsa, para retirar edições,
que a ser transportadas por ônibus de linha, eram deixadas na venda do senhor
Raimundo Scherer. Em casa, Hipólito e Mariazinha, se mostravam por demais
impressionados com a estampa do campeiro que chegou, almoçou e depois seguindo
a tranquito, sumiu-se na poeira ao longo da estrada. Ainda comentavam-se entre
ambos, sobre a beleza do cachorro de cor parda e rabo enrodilhado, que também
com certa desenvoltura, troteava a sombra do cavalo, na medida do possível
procurando proteger-se dos reflexos danosos dos raios solares. Hipólito e
Mariazinha, com suas mentes repletas de curiosidades, perguntavam então para
sua mãe, senhora Marta: “Mamãe, quem é
aquele homem que chegou, chimarreou, almoçou e depois saiu ao lado de papai? E
para onde foram?”
Dona Marta, procurando a satisfazer a
curiosidade das crianças, respondeu: “Este
homem, meus filhos, tratasse de negro Henrique, que é filho de tio Emilio, que
foi escravo de um irmão de meu avô”.
Hipólito, não sentindo-se totalmente
esclarecido, procurando saber algo que tornasse mais convincente, já com alguma
insistência voltou a indagar: “Mas para
onde foram? E o que fazer?”.
Dona Marta, sempre atenta à
curiosidade dos filhos, voltou a fazer-se compreender, fazendo ponderações de
maneira um tanto mais esclarecedora: “Pois
ainda ontem, o papai de vocês comprou mais uma vaca para nós tirarmos leite, e
hoje resolveu convidar este crioulo, para ajudá-lo a buscar, quando a mesma se
encontra na invernada do senhor Forquini, em São João do Gramado”.
Algumas horas depois já ao anoitecer,
Hipólito e Mariazinha, sentiam seus desejos de saber totalmente correspondidos,
ao ver o papai regressar juntamente com o companheiro, trazendo presa sobre a
armada do laço, uma vaca com úbere bastante volumosa, com quatro tetas também
salientes, quando afirmaram ser a mesma da raça Caracu. Para maior alegria das
crianças, a referida vaca leiteira vinha acompanhada por um belíssimo
terneirinho, (bezerrinho). No dia seguinte, Hipólito, narrou em detalhes o
feliz acontecimento a seu irmão Carlitos, que se encontrava na escola no dia
anterior. Carlitos, guri já mais maduro e experiente, a dar explicações para
seu irmão, avaliava ser este negro Henrique, também proprietário de um galo
preto, que calçado com puas de aço num tambor de rinhadeiro, consegue ser de um
arrebatamento totalmente devastador. Comentando que certa vez, num tambor de
rinhas do senhor Luizinho Dalavechia, o dito galo preto, deixou em curto espaço
de tempo, um famoso antagonista que por ali se atreveu, com a cabeça totalmente
destroçada e fora de combate, ainda antes do primeiro banho. Carlitos, a
continuar a comentar, ser este crioulo, considerado em toda esta profícua
região, como o campeiro mais ginete, por isso possuidor de uma raríssima
habilidade, que consegue facilmente a dominar os mais aporriados baguais,
quando para fazer bonito, costuma em carrreiradas montar e riscar de esporas no
melhor sistema gaudério, por entre verdadeiras multidões, sem levar um único
tombo desses ferozes e diabólicos animais. Desferindo-lhe por sobre as orelhas,
ensaiados golpes de mango, reduzindo-se o velhaquiador a titubear.
Dias depois, quando os dois
irmãozinhos transitavam pela estrada, logo acima das palmeirinhas, cruzou por
eles o mesmo negro com jeito arrogante, que ao confrontar-se em marcha lenta,
emitiu-lhes um quase debochadamente Buenas Tarde. Carlitos, voltou então a
fazer referências, citando o dito negro Henrique, quando para o olhar quase
incrédulo e curioso de Hipólito, ponderou: “Ele
é ordeiro, tem disciplina, também é respeitador, salvo o que se sabe de uma vez
em que ao tomar umas canhas, se atreveu a provocar o nosso avô em frente ao seu
rancho quando ele já era bem velhinho, e sem mais energia física suficiente,
para poder enfrentá-lo”. Carlitos, logo após, voltou a fazer conjecturas, a
relatar que certo dia, em carreiras de cancha reta lá na raia do hoje finado
Crescêncio Bizarro, três desaforentos, por motivos não bem esclarecidos,
resolveram a fazer-lhe uma afronta.
“Mas
a seguir o que aconteceu?”
indagou Hipólito curiosamente. Carlitos, voltou então a descorrer: “Mas num pronto tinir de ferro branco, negro
Henrique, em curto espaço de tempo, colocou os três desafetos no mato”.
Cortando um na ponta do queixo, tirando a ponta da orelha do outro e cortando o
terceiro de alto a baixo, com um risco que começava no peito, cruzando por
sobre o umbigo e atingindo as partes baixas.
Hipólito habituava-se a observar em
mínimos detalhes, tudo o que ocorria a sua volta, uma situação que muito lhe
intrigava era a questão de tio Estácio Lírio de Oliveira, negro velho que um
dia também foi escravo, haver construído um belíssimo violão, sendo que o
referido trabalho teve origem a partir de um pedaço de tronco de corticeira.
Onde o sertanejo a fazer uso, aprendeu a executar com extrema maestria, o clássico
TRISTEZA DO JECA, mais uma valsa que
seria de sua própria autoria, quando a não conseguir aprender outra, jamais
saiu destas. Mas o fator que realmente mais chamou atenção de Hipólito era o
motivo determinante para que tio Estácio, possuísse uma matilha de cachorros. O
Respeito, o Guri, a Lorota, a Patrulha e o Colibri, que mesmo alimentados
exclusivamente com milho cru, conservavam-se gordos e sadios, com pelos finos e
lustrosos. Hipólito ao analisar tal conjuntura, por vezes perplexo na sua
intimidade ficava se questionando, que apesar de toda esta segurança que já lhe
parecia o máximo, ainda tio Estácio fosse obrigado a fazer uso de uma
ferradura, colocada sobre a porta da varanda, para impossibilitar que o mal
olhado ou mesmo o feitiço, viesse a bater em sua porta e adentrar pelo interior
de seu rancho, a destruir sua felicidade e sua vida. Outra questão empactante
que despertava imensa curiosidade de Hipólito, era a decisão do negro velho em
colocar na ponta de uma estaca, para proteger sua roça de milho, uma volumosa
cabeça com aspas de boi franqueiro, para dificultar que o olho gordo viesse
penetrar em sua plantação, e consequentemente lhe causar sérios prejuízos ou
danos. Hipólito costumeiramente passou a sentir muito medo, de tudo que havia
em sua volta e que julgava ser perigoso. Medo de ser atacado e até devorado por
cães bravos, medo de ser carregado pelas correntezas dos rios, enxurradas e
enchentes, medo das chuvas fortes, ventos, relâmpagos e trovões, medo das
cobras, lagartos e ratos. Mas acima de tudo, o seu maior temor e que ainda mais
lhe torturava, era o pavor de assombrações, ante a reação imaginaria quanto ao
temor de almas penadas de muitos campeiros e guerreiros, quando estes havendo
morrido no pecado, acreditava que poderiam voltar ao nosso mundo em forma de
fantasmas, para atacar os inocentes e pessoas boas e de paz.
O ano de 1946 foi marcado de janeiro a
outubro por períodos de chuvas intercaladas, em toda a região do Alto Jaquí.
Favorecendo significativamente o desenvolvimento da atividade agrícola, daquela
próspera e conceituada região produtora.
Senhor João, destacado agricultor da época, havia sido favorecido com
excelente safra de mandioca, em conseqüência farinha e polvilho, este já em
menor escala, mais colheita farta de milho, abóbora e arroz, entre outros
gêneros, feijão e trigo. No entanto, a atividade mais rentável se caracterizada
no ramo de suinocultura, com venda de animais a cada espaço intercalado de 90
dias, que vinham também acompanhados, de excelente produção de feno (Alfafa).
Cujas colheitas continuas, não ultrapassavam o espaço de 30 dias. Mas já no
inicio de novembro daquele mesmo ano, a agricultura daquela desenvolvida
região, sofria o ataque inesperado de imensas nuvens de gafanhotos (Epiceno),
nome comum aos insetos saltadores, que chegavam talvez aos bilhões. Pragas
estas, compostas por uma capacidade invulgar de destruição ou apetite
insaciável, quando devoravam sem piedade alguma em questão de uma hora, grandes
roças de milho e Alfafa, que haviam sido plantadas com imenso carinho e zelo.
Reforçando ainda mais a calamidade já
ali existente, o mês de dezembro daquele mesmo ano, foi assolado por uma
estiagem de mais de 30 dias, castigando ainda de maneira significativa a
plantação de milho, já por demais debilitada pelo recente ataque de insetos. A
água das vertentes sofreu então um quase esgotamento, situação anormal para a
época. O arroio Cotovelo (Puitanzinho) com suas águas claras e cristalinas,
margeava a propriedade do senhor João, mesmo assim favorecendo de maneira
significativa a abundância, deste precioso líquido incolor e preponderante a
formação da vida. Devido à escassez de água da fonte, situada nas proximidades
da casa, dona Marta, passou então a lavar as roupas no arroio Cotovelo, que
fazia divisas de suas terras, no mato e fundo do potreiro. Hipólito, cheio de
sentimento de alegria, permanentemente passou a acompanhá-la. O local escolhido
por ela, tratava-se do conhecido bebedouro, ponto onde um desenvolvido angico ao
desenraizar-se ainda verde, havia se debruçado sobre as águas do volumoso
arroio. Então dona Marta, colocando uma tábua sobre os galhos que beiravam a
água, sentava-se comodamente sobre o tronco da referida e gigantesca árvore,
apoiando-se sob os resistentes e frondosos galhos. Hipólito entretia-se sem
parar, enquanto comia Pitangas e Cerejas, também brincando com flores de
corticeiras, fazendo delas na sua fértil imaginação, marrequinhas, fazendo com
que as mesmas, na sua fantasia, nadassem a beira da água. Em certo dia e no
sossego de uma tarde, enquanto dona Marta procurava quebrar a monotonia daquele
quase anoitecer, cantando a Valsa dos Patinadores, o menino foi num instante
surpreendido com o mergulho efêmero de um pássaro sobre as águas, que talvez em
fração de segundo, retornava a superfície, trazendo preso em seu longo bico um
peixe de tamanho médio, que no momento lhe pareceu ser um Jundiá. Neste instante Hipólito voltou a recobrar sua
curiosidade, a gritar para sua mãe: “Mamãe,
que ave é aquela que mergulhou ai em sua frente e apanhou um peixe do fundo da
água, que vai levando não sei pra onde?”. Dona Marta passou então a
esclarecer ao menino, que aquele pássaro, é ave Alcedinídia, que se alimenta
pelo que sabemos, exclusivamente de peixes e insetos aquáticos, aqui em nosso
meio é conhecido apenas como Martim - Pescador, mas em outros lugares é chamado
também de Ariramba. Enquanto a noite já se aproximava e dona Marta, rapidamente
juntava as roupas já lavadas, colocando-as sobre uma grande bacia de alumínio,
instalando também a tabua de lavar, sobre os galhos mais altos de um pé de
Sarandi ou Amarilho.
Naquele momento ainda o menino mais
uma vez amedrontou-se, ao ouvir o ganido de um animal silvestre, o qual lhe
pareceu estar apenas a alguns metros de onde eles se encontravam, isto é, do
outro lado do arroio entre as enormes touças de Taquaraçu. Hipólito, então
sentindo imediatamente grande pavor, gritou para sua mãe: “Mamãe, de quem é este uivo? Não é cachorro não!”.
Dona Marta também já bastante surpresa
e amedrontada, caminhando rapidamente pelo mato em direção a sua casa, procurou
justificar ao menino, de quem seria aquela vociferação. Explicando então em voz
baixa, que aquele ulular seria do Lobo - Guará, animal carnívoro, que também se
alimenta de frutas silvestres e que só ataca pessoas adultas em caso de
sentir-se ameaçado. Mas logo ao saírem do terreno inculto, foram mãe e filho
mais uma vez surpreendidos, ao avistar para o lado do quadrante sul, uma barra
de cor negra que velozmente cobria toda a circunferência. Dona Marta, naquele
instante vibrou de alegria, ao insinuar para o menino, que a chuva estava
chegando com abundância, e que daria fim a seca que sem piedade alguma,
castigava a plantação e os animais. Quando ainda ponderava: “Mas que presente divino estamos recebendo
de ano novo”. Ao chegar em casa quando a chuva já caia copiosamente,
Hipólito a festejar o final da seca, ainda comentou para seus irmãozinhos, do
espetáculo proporcionado pelo Martim – Pescador, a retirar em um mergulho
mágico sobre as profundezas do Cotovelo, um peixe comum, usando para isso
apenas o bico e o malabarismo instintivo ou natural. A seguir o menino ainda
comentou detalhadamente o episodio sobre o uivo do Lobo – Guará, na outra
margem do Cotovelo, no mato dos colonos de Boa Esperança, quando arrepiava-se
de pavor.
Muitas vezes enquanto dormia na
escuridão da noite, Hipólito ante a concepção do perigo imaginário, sonhava
estar caindo em um precipício, onde havia muitos lobos extremamente ferozes, quando
na ânsia de devorá-lo, emitiam ganidos atemorizantes. Em uma determinada manhã,
enquanto Hipólito e sua irmã Mariazinha, brincavam a sombra do arvoredo, foram
as crianças repentinamente despertadas com a aproximação de dois touros bravos,
que havendo escapados do potreiro do tio Estácio, disparavam o mais rápido
possível, na direção exata em que eles se encontravam. Mesmo surpreendidas, as
crianças ainda a tempo puderam atinar: “Mas
que sorte a Adelaidinha ter ficado dormido dentro de casa”. Enquanto ambos
corriam o mais depressa possível na direção de uma grande carroça, que
encontrava-se estacionada nas imediações, ainda ouviam os gritos da irmã mais
velha, Luzia: “Corram, corram!”Depressa,
depressa” “Escapem, escapem!”. Hipólito a fazer juízo de tal situação, foi
o primeiro a alcançar a carroça, onde conseguiu subir apoiando-se nos raios de
uma roda traseira. A seguir alcançou a mão para Mariazinha, que também
procurava evadir-se, quando afinal sãos e salvos assistiram os ferozes animais
chegarem, quando pacificamente cheiraram, depois lamberam as tábuas da carroça
e finalmente sem ter oferecido perigo algum aos inocentes, sossegadamente
retornaram. Muitas vezes a reproduzir-se, Hipólito passava a fazer juízo de tal
situação quando se perguntava: “Porque
todo este medo? E porque razão não sou também assim como negro Henrique? O mais destemido entre todos os ginetes. Quando
a deixar de ser vulgar, se distingue de seus congêneres, pela rara habilidade
de tornar-se admiravelmente capaz de espantar o medo. Quando a um só tempo a se tornar um monstro, consegue quebrar a manha
dos baguais mais cruéis: Ainda porque razão eu não ser assim também como este
crioulo? O mais abarbarado entre todos os valentes, que talvez em um só sublime
momento, consiga reprimir a dezenas de almas penadas ou assombrações, que
porventura apresentem-se em minha frente”.
Passaram-se ainda muitos dias, meses,
e talvez um ano, quando Hipólito, já mais crescido andando a cavalo, passou
também a servir de mandalete, para seus pais, também chasqueiro ou recadeiro
como se diziam. Movimentando-se o menino de um lado para outro, usando na
maioria das vezes como montaria, apenas além do freio e buçal, mais um pelego e
baxeiro. A estrada já lhe proporcionava algo a mais, como por exemplo, se
deparar ao longo do caminho, com pessoas de origens, sotaques e características
diferentes. Como foi o caso de encontrar-se seguidamente com Cocô e Marciana,
casal atípico que sempre lhe despertou inúmeras duvidas e curiosidades. Este
casal morava como agregados do senhor Terézio, sendo o mesmo proprietário de
cavalos de corrida. O jovem Cocô, como profissional costumeiramente vencia quase
todas as corridas que efetuava, tocando com extrema habilidade, quando foi
consagrado como atleta por demais prestigiado. O cidadão Cocô, media menos de
1,50m de altura e pesava apenas 39 kg, enquanto sua jovem esposa Marciana
possuía 1,85m de altura, pensado aproximadamente 75 kg. Tratava-se eles de um
casal extremamente feliz, quando em horas de folga passeavam habitualmente
juntos, caminhando lado a lado e de mãos dadas. O espirituoso senhor Cocô,
talvez no sentido de impressionar, batia fortemente os pés sobre o solo, no
melhor estilo militar. Marciana por sua vez, mulher loira dotada de uma
excelente compleição física, caminhava suavemente e de maneira instintiva,
quando exibia suas belíssimas pernas, que Deus do alto de seu trono e poder,
carinhosamente a presenteou. Hipólito ao ver o casal frequentemente passar,
colocava em questão sua profícua imaginação: “Como serão os filhos de Cocô e Marciana, um dia quando virem ao mundo?
Pigmeus ou raquíticos, mas talentosos assim como Cocô? Ou elegantes, vistosos e
belíssimos, idênticos a Marciana?”.
O menino dentro de seu espírito
ilusório e pureza de pensamentos, acreditava ter já nascido como um imutável
felizardo, em poder conviver entre outros indeterminados acontecimentos, com a
chamada fase de ouro da música popular brasileira. Em suas quase continuas
andanças a cavalo, que lhe era atribuído, Hipólito costumava fazer ao longo do
caminho percorrido, o seu mais sonhado e interminável palco imaginável. Quando
quase ininterruptamente cantarolava, de maneira extremamente baixa e suave,
quando mesmo só ele pudesse ouvir, as mais empolgantes e apaixonantes canções
que na época se evidenciavam. A retratar melodias inesquecíveis de Ari Barroso,
Lupcinio Rodrigues, Benedito Lacerda, Luiz Gonzaga e Noel Rosa, entre tantos
outros talentos que só mesmo ele tivera a oportunidade de conhecer, através do
radio, este, o mais importante veiculo de comunicação disponível ate então. Os
seus principais ídolos cantores da época, se caracterizavam como Elizete
Cardoso, Carmen Miranda, Vicente Celestino, Orlando Silva e Francisco Alves,
este o incomparável Chico Viola, que para o rapaz se constituía como seu principal
ídolo. Em finais de semana, quando aproveitava única e exclusivamente para
brincar, Hipólito se deliciava fundamentalmente em finais de semana, ao ouvir
através do receptor de radio, narrações emocionantes em transmissões
esportivas, quando principalmente as mesmas eram realizadas, aos domingos à
tarde. Quando os determinados jogos eram realizados em Porto Alegre, bem como
São Paulo, e muito principalmente Rio de Janeiro, época em que era esta, a
capital federal do Brasil. Vivendo em tais condições, o menino era extremamente
consciente de si mesmo e dos seus próprios valores e limitações, quando
conhecia cidades grandes, só mesmo através do seu fértil poder imaginativo. Em proficientes
oportunidades, o garoto silenciosamente ouvia comentários por parte do seu pai
e irmãos mais velhos, quando entre outros mais variados assuntos, também a
conversa girava em torno de futebol, quando os mesmos entusiasticamente mencionavam
o Internacional de Porto Alegre e seu craque principal Tesourinha, além da
Sociedade Esportiva Palmeiras e ainda Flamengo e Vasco da Gama e seu principal
atleta, Ademir de Menezes, entre outros grandes clubes. Dentro do seu mais
intenso desejo de informar-se e aprender, o garoto permanecia completamente
imóvel, a ter conhecimento de que futebol era jogado com bola de couro, bem
diferente do que ele era acostumado a praticar na escola, oportunidade em que o
mesmo ali na roça, era jogado unicamente com bolinhas de borracha. Alguns dias
depois, o garoto já era informado através da crendice popular, de que em São
Paulo, entre tantos outros renomados atletas profissionais, existia um jogador,
cujo nome era Jair da Rosa Pinto, sendo o mesmo, dotado de um chute
completamente arrasador cujo impacto em determinadas circunstancias, poderia
tornar-se até mortal. Hipólito levado a persuadir tais fatos que não lhe
pareciam inverdades, em situações que lhe eram impostas a estar solitário,
recomeçava a sonhar com coisas de considerável importância e que poderia lhe
acontecer ao longo da vida, como exemplo, encontrar-se um dia já como adulto,
em uma tarde de domingo em pleno Estádio do Maracanã. Onde deveria estar
acontecendo um sensacional clássico entre Flamengo e Palmeiras, quando ele
deveria se posicionar no mais alto das arquibancadas, para assim poder melhor
se proteger, dos verdadeiros canhonaços que deveriam ser desferidos pelo
incomparável Jair da Rosa Pinto. Procedendo assim dessa maneira, sonhava ele
poder pacificamente ouvir a famosa Charanga do Jaime tocar, bem como se
sensibilizar com as cabeçadas do zagueiro Pavão, atleta rubro-negro, bem como
as matadas de bola do “sempre imitado, mas nunca igualado” Dequinha, atleta lendário.
Depois de desfazer-se momentaneamente de seu mundo interior de fantasias e
sonhos, Hipólito retornava a seu prazeroso e jovial universo de realidades,
oferecendo uma prece a São Jorge, seu santo padroeiro, com um insistente
pedido, para que tanto o Flamengo como o Internacional se tornassem
respectivamente campeões de seus próprios estados naquele mesmo ano.
A noite silenciosa do mês de agosto,
se desenhava extremamente fria. Talvez na unidade de medição de temperatura,
segundo a escala Celsius, ao ar livre oscilava em torno de -10° C. Enquanto o
Minuano, vento gelado também conhecido como Andino, chegando da Cordilheira, assoviava
sem piedade alguma, sobre os Tapa – Ventos do galpão. Hipólito sentado
confortavelmente junto ao fogo de chão, contemplava tal situação, como um dos
mais belos e atraentes espetáculos, que a natureza poderia lhe oferecer. Ao
mesmo tempo, em sua frente, o mulato Napoleão Ferreira, que era também tratador
de cavalos de corrida, se distraia de maneira imensurável, a relatar para o
senhor João, os acontecimentos históricos relacionados à revolução do ano de
1932. Quando ele, integrando o célebre regimento Pé no Chão de Palmeiras das
Missões, comandado pelo Coronel Finzinho de Assis. Segundo ainda suas
esclarecedoras palavras, havia participado de encarniçados combates contra seus
próprios irmãos brasileiros. Quando teve a oportunidade de sacrificar, mesmo
contra sua própria vontade, alguns compatriotas seus. Hipólito, ao ouvir tal
explanação, extremamente contrariado e desiludido, imediatamente procurou seus
aposentos. Mas antes de entrar em suspensão normal e periódica da consciência e
da vida (sono), a fazer juízo de tal fato, ainda interrogou-se: “Mas se estas guerras ou revoluções são tudo
isto que falam, eu prometo a mim mesmo e a Deus, que quando crescer um pouco
mais e me tornar adulto, Caudilho algum desse estado ou país, conseguirá me
recrutar ou me levar à força, pois se quiserem me chamar de covarde (cobarde) a
partir deste momento, poderão então assim proceder. Porque fugirei para o mais
fundo dos matos, quando a viver somente entre os selvagens, passarei pelo
restante de minha vida, a desfrutar unicamente de tudo o que a natureza nos
concede. Ainda acredito que somente quando conseguir a viver apenas entre os
irracionais, consiga eu me tornar o mais verdadeiramente racional entre os
humanos”.
Mas em certa manhã sombria e úmida da
estação hibernal, quando Hipólito se encontrava estudando na escola, situada
mais ou menos a uma légua de distancia de sua morada, o menino em um momento
passou a sentir leve dor de cabeça, preocupados, os professores, Lulo e Aninha,
imediatamente lhe aconselharam a regressar a sua casa, para que a sua mãe a
tomar conta da situação, lhe medicasse com chazinhos e remédios caseiros. O
menino tomando então o caminho de retorno regressou em passos lentos. Mas
quando se encontrava nas proximidades da antiga encruzilhada do senhor Pedro Meira, foi
despertado para um acontecimento totalmente imprevisto. Quando avistou a uma
razoável distância, o que no momento lhe pareceu inverossímil. Mas só ao
aproximar-se, que o pacifico, mas curioso menino conseguiu então determinar tal
situação. Pois tratava-se de um cortejo fúnebre, que vagarosamente e dentro do
possível, se aproximava. Hipólito, imediatamente num gesto da mais completa
reverência, postou-se ao lado do caminho com o chapéu a mão. Na vanguarda
encabeçando o cortejo, movimentava-se lentamente uma requintada carruagem
puxada por uma excelente parelha de cavalos, quando o menino imediatamente pode
constatar ser a mesma de propriedade do senhor Osvaldo Ribeiro de Quadros
(parente Sinhô), que também no momento era o condutor. A cruz colocada em pé
junto à tampa dianteira da carruagem, que se divisava a regular distância,
sintetizava a prova mais evidente do que estava acontecendo. A seguir, centenas
de cavaleiros perfilados, como que participando de um desfile militar, também
se deslocavam com razoável lentidão. Em ambos os lados do caminho haviam
saliências, produzidas pelo provável natural rebaixamento da estrada. Hipólito
postando-se em um costado, na posição em que se encontrava quando a carruagem
passou, conseguiu perfeitamente perceber o caixão, produzido com rústicas
tabuas de Pinho, que no momento era colocado sobre o lastro da condução. Depois
passou a distinguir através da percepção operada pela visão, a todos os
cavaleiros, ate passar o último. Uns tagarelando, outros cabisbaixos, que a
fixar de um a um o menino conseguiu identificar quase todos. A seguir Hipólito
extremamente tomado de curiosidade, retomou então seu rumo, quando a refletir
sobre o acontecimento, ficava se perguntando para onde se dirigia e de quem
seria aquele funeral? Mas ao cruzar pela primeira pessoa conhecida, teve
imediatamente o seu desejo de saber totalmente esclarecido. Pois foi informado
por Valdemar, jovem e comunicativo, filho de dona Paulina, que aquela imensa
caravana que recentemente passou, estaria acompanhando o corpo de negro
Henrique, que havia falecido. Quando segundo o expansivo rapaz, os despojos
mortais do referido cidadão, estariam sendo encaminhados para o cemitério velho,
na saída para o campo, onde finalmente seriam depositados em uma escavação a
sete palmos de profundidade. Igualmente a referida cruz, falquejada, tomando
por base o cerne de Guajuvira ou Tarumã, que estaria acompanhando o cortejo,
também seria plantada a alguns centímetros da cabeceira da sepultura. A partir
daquele momento, Hipólito, passou a acreditar quando a meditar sobre o
ocorrido, a não haver razão para alguém sentir-se demasiadamente fraco e a um
só tempo encontrar excessivamente fortalezas em outras pessoas. Nos diversos
dias em que sucedeu a esta ocorrência, Hipólito passou seguidamente a meditar
sobre tal acontecimento, quando se perguntava: “Mas se este negro Henrique foi
sempre o mais valente, o mais ginete e aparentemente o mais saudável, porque
razão de um dia para outro, como disse um poeta, a morte china, maléva e traiçoeira que ate da pena” de repente sem
ao menos pedir licença, invade o seu rancho, e ao mesmo tempo, sem encontrar o
mínimo de resistência, implacavelmente o arrebata. A partir deste dia, o menino
passou a acreditar que os humanos são frutos do amor de um mesmo pai, quando
independente da origem, cor ou condição social, somos perfeitamente iguais.
Somente a ele, este senhor onipotente, devemos nos humilhar. Somente a ele
devemos nos curvar e consequentemente sobre a proteção deste infinito e
misericordioso Pai, sem nada mais a temer, seremos eternamente fortes.