UM BUGRE
MARAGATO
Miguel Arnildo
Gomes
Era um domingo, véspera de carnaval do ano de 1952. O
dia apresentava-se extremamente chuvoso, mas nada que pudesse impedir as
festividades comemorativas, pela abertura da nova capelinha de São Roque.
Naquele aconchegante recanto afastado a 15 km da Paróquia de Cristo Rei de Não
Me Toque – RS, onde centenas de fiéis católicos se aglomeravam, para participar
das festividades alusivas a inauguração do referido e modesto templo. Eram na
sua grande maioria, famílias de arraigados agricultores e criadores, que faziam
exclusivamente do amanho a terra, plantio e colheita, o seu único e
incontestável meio de sobrevivência, quando além do sustento da própria
família, ainda decididamente colaboravam com seus produtos agrícolas mini pecuária
para o abastecimento dos pequenos, médios, e principais centros consumidores.
Fastimilhano José dos Reis há este tempo já era um cidadão cinquentão, pessoa
radicalmente humilde e pobre e que casado já há quase 30 anos com Isabel, sua
eterna namorada, jamais durante a vida conjugal tiveram filhos ou possuíram
alguns bens de capital. Talvez um pequeno cãozinho guaipeca ou totó como se
dizia, mais uma gatinha que Isabel a chamava carinhosamente como Mitia. Também
jamais em sua vida, este referido senhor fora chamado pelo próprio nome, pois
para todas as pessoas que o conheciam, indistintamente era conhecido apenas
como Fastimiano ou Bugre. Isabel levando-se em conta seus cabelos caracolados,
talvez pela semelhança a lã de ovelha, dava-se então o apelido de Bequinha ou
Beca.
Fastimiano e Beca não possuindo moradia certa ou
particular, residiam no próprio local de trabalho, onde munidos de machado,
foice, serrote, mais enxadas, pás, cunhas e facão, além de abrir roças, eram
especializados em preparar tabuinhas para cobertura de casas e galpões.
Era um casal extremamente carismático, denotadamente
amados, muito principalmente pelas crianças. Sempre morando a beira do Arroio
Cotovelo, mais para cima, ou mais para baixo, na margem direita, mais muito principalmente
na margem esquerda.
Quem não se dispunha na época em ceder uma pequena
casa, para que o Fastimiano e a Beca, por algum tempo pudessem fixar suas
residências. Pois eram eles, compadres de muitos outros casais de agricultores
e proprietários rurais, com quem conviviam na mais perfeita paz e solidariedade
humana. Fastimiano mesmo ainda correndo em suas veias o sangue congênito,
jamais foi seguidor da cultura nativa de seus avós, os quais acreditavam
piamente em Nhandcy (a sua mãe terra).
Quando guiados pela força de Kaiuã (dom da palavra),
chegavam ao encontro de Nhanderuvuçu (o seu Deus pai).
Quando ainda encontravam através de seu Pajé,
feiticeiro indígena Murubixaba, energia suficiente para implorar a Tupã (a
força dos ventos e dos pássaros), para assim poder estar totalmente livre e
protegido do furor de tempestades e raios. Fastimiano nem mesmo foi sabedor,
que sua cultura religiosa nativa, havia sido arrebatada de seus ancestrais
indígenas. Quando os pregadores da companhia de Jesus conseguiram com extrema
habilidade, retirar de seus povos, o Deus Tupi – Guarani, para assim poder
introduzir entre os mesmos, o nosso Deus branco, como passou a ser chamado
pelos nativos.
Ao longo de sua vida, talvez também não foi sabedor
que a mesma Santa Virgem Maria, para quem eles tanto rezavam e acendiam velas,
fora um dia a igualmente conhecida como Tupancy (Senhora Protetora), para seus
avós Guaranis. Fastimiano e Beca, tinham como hábito, visitar diariamente seus
amigos e que eram em razoável numero, quando o bugre velho costumava
identificar as crianças pelo próprio apelido familiar. Também eram eles
participantes ativos de reuniões sociais, quando se vestiam adequadamente, bem
como em encontros ligados ao catolicismo em geral e celebrações festivas. Mas como
nunca possuíram recursos financeiros suficientes para adquirir um receptor de
radio, que na época devido aos elevados custos, constituía-se como uma raridade
e restrito apenas para os casais mais abonados. Marcavam-se então presença
obrigatória em todas as terças e quintas – feiras, nas casas de compadres e
comadres a partir das 19 horas para poder ouvir a musica caipira, gênero
musical pelo qual se demonstravam ser extremamente apaixonados, quando estas
musicas eram interpretadas ao vivo pelos três famosos batutas do sertão,
Torres, Florêncio e Rielli Filho. Isabel, dentro de seus princípios
naturalmente hábeis e de extrema paz, procurava viver uma vida unicamente
voltada para a agudeza de espírito e profundo amor ao próximo. Enquanto
Fastimiano, apesar de sua perspicácia, mesmo a não ser eleitor, em todas as
reuniões festivas, denotadamente usava sobre o pescoço um tradicional lenço
vermelho, querendo com isso simbolizar o partido libertador, de ideais
maragatos e ideologias semeadas entre nós e ao longo da história, pelo tribuno
Gaspar Silveira Martins. Sendo este
conjunto de idéias, ainda nos anos 50, passiveis de milhares de seguidores,
principalmente no interior do estado do Rio Grande do Sul. No ano de 1952,
ainda era o Presidente da Republica o Doutor Getúlio Dorneles Vargas, gaúcho de
São Borja – RS, que foi eleito por larga margem de sufrágios em 03 de outubro
de 1950. Quando derrotou pelo voto popular (principalmente dos mais humildes),
o seu principal antagônico e sempre combativo Brigadeiro Eduardo Gomes da UDN.
quando se dizia popularmente na época, que seria este o candidato que
representava as três forças armadas. Exército, Marinha e Aeronáutica.
Depois dessa histórica eleição, o imortal presidente
Getúlio Dorneles Vargas levando-se em conta sua profunda intrepidez e carisma
junto aos humildes, voltava ao poder, agora nos braços do povo. Pois ele já
havia governado o País durante 15 anos, a partir de um movimento armado em
1930, quando em 1945 foi deposto por um golpe militar.
Getúlio Vargas também não concluiu seu segundo
mandato, quando novamente, não conseguindo suportar tamanha pressão e muito
principalmente militar, suicidou-se em seu próprio palácio em 24 de agosto de
1954.
Na tradicional festa de São Roque, que habitualmente
se comemora a cada dia 16 de agosto, naquele ano de 1952, dado ás circunstâncias
da inauguração da nova capelinha, a mesma foi realizada com grande ênfase no
mês de fevereiro, véspera de carnaval. Meu pai e minha mãe particularmente por
motivos de luto familiar, não se fizeram presentes naquela reunião
comemorativa. Coube a mim na companhia de meu irmão Antônio Carlos e irmãs mais
velhas, prazerosamente representar nossa família, naquele ambiente festivo e de
cunho significativamente familiar e religioso. Eu me encontrava
excepcionalmente feliz naquele domingo chuvoso. Quando passava a chover mais
intensamente e ainda a não haver pavilhão no local, o povo se dividia, cabendo
as mulheres e crianças a ocupar as dependências da igrejinha, quando então
conversavam de maneira imensuravelmente Cortês e em determinados momentos
voltavam a fazer suas preces oferecidas a São Roque, o Santo padroeiro e
protetor dos pequenos animais. Enquanto isto os homens e jovens de ambos os
sexos se aglomeravam nas dependências da escola municipal Tomé de Souza, que se
divisava ao lado da referida capela. Eu na ânsia dos meus 12 anos e no afã de
ouvir a excepcional musica, procurava mesmo aos empurrões, me posicionar o mais
próximo possível, para ouvir um dos mais renomados conjuntos musicais da cidade
de Carazinho, a constatar que ali estava pela primeira vez e gratuitamente a
banda Fossati que era regida pelo professor Canela, e sobre o comando do
proprietário da mesma, o senhor Celeste, quando desta vez também enxertados
pelo renomado acordionista, Guri da Constância. Era naqueles tempos um conjunto
de ótima qualidade e reconhecidos por qualquer um, mesmo que fosse também eu no
momento, talvez imaginado por muitos, assim como realmente era, apenas mais um
singelo e insciente conhecedor de teoria musical. Quanto a gêneros musicais,
este variava dentro da musica popular brasileira, entre outros ritmos, sambas,
boleros, baiões, bem como musicas portenhas e até mexicanas, além de diferentes
marchinhas carnavalescas, como foi Chequita
Bacana, Taí, Ó Jardineira, Guerra da Coréia...
Mas como naqueles tempos ainda se estava longe de se
ter luz elétrica por aquelas bandas, as comemorações festivas eram realizadas
em locais impróprios, a não haver lampiões, perdurava-se apenas enquanto
houvesse a luz do dia. No entanto, enquanto a noite já se aproximava
rapidamente, eu ouvia os chamados insistentes de meu irmão com as seguintes
intimações:
“Vamos embora
tchê, porque já é tarde demais!”.
Mas, quando nos preparávamos para imediatamente deixar
o local, fomos em um momento surpreendidos com um pequeno tumulto localizado,
quando percebemos a alguns metros de distancia, um grupo de homens e mulheres
caminhando lentamente, com pedidos de:
“Atenda-me, por
favor, Fastimiano”, enquanto o mesmo retrucava em altos brados:
“Eu não
atendo a ninguém, e prometo que pego aquele político meia tigela e raspo o
bigodinho nojento dele com o meu facão, porque sou libertador e não abro mão de
meus ideais maragatos!”.
Quando ainda continuava o mesmo:
“Eu pego
aquele baixinho mentiroso, que só promete e nada faz pelos pobres, em qualquer
volta da estrada e viva o partido libertador. E viva o partido libertador!”
Mas num instante aproximou-se do bugre velho o
inspetor de quarteirão, senhor Firmiano de Quadros, quando energicamente lhe questionou:
“Mas quem
você quer pegar na primeira volta da estrada, Fastimiano, e raspar o bigode?
Pois pelo que sei, aqui só tem pessoas boas e de paz”.
Fastimiano a ser efusivo, em momento algum deixou de
ser transparente, a sair com mais esta:
“Eu prometo
sim, e lagramputa algum me interrompe, porque na primeira volta da estrada eu
pego o Getúlio Vargas e raspo o bigodinho nojento dele com o meu facão de
lascar tabuinhas”.
Esta foi, portanto, mais uma façanha do Fastimiano,
bugre velho, querido por todos, mas por vezes não podia ver bebidas alcoólicas
em sua frente porque a tomar todas, se descontrolava totalmente e jogava pelo
gargalo qualquer espécie de sensatez, razão e até mesmo antigas e sinceras
amizades.
Os anos passaram-se como sempre tão depressa, quando a
Bequinha, sua deusa, se foi primeiro, depois o bugre Fastimiano morreu com mais
de 90 anos, quando estava internado em um asilo a exemplo de tantos outros,
quase esquecido, deixou entre nós, apesar de algumas fraquezas momentâneas e
próprias do ser humano, um perspicaz exemplo de ternura e afeto, principalmente
oferecidos ás criancinhas que pela transparente impressão deixada entre nós ao
longo de sua vida, que ele tanto amou.
Eu acredito e tenho até plena convicção que o bugre
Fastimiano, foi apenas mais um entre os milhares de descendentes das tribos
guaranis, que habitavam a margem esquerda do Rio Uruguai, região missioneira,
conhecida também pelos descendentes espanhois, segundo o historiador Luis
Carlos Barbosa Lessa, através de seu consagrado livro Rodeio Dos Ventos, como
País Del Tape. Com a catequização dos indígenas, dos Sete Povos das Missões, os
nativos guaranis começaram então a perder suas origens ou raízes. Anos mais
tarde, com a invasão das missões simultaneamente pelos exércitos de Portugal e
Espanha, foram os remanescentes selvagens que restaram dos combates, enxotados
do seu habitat natural. Então sedentos e famintos, passaram a perambular pelo
continente de São Pedro, em busca de seus antigos hábitos e cultura religiosa.
Sonhavam eles, que um dia poderiam retornar em toda a sua plenitude, contando
com a força de seu Deus Pai (Nhanderuvuçu) e Mãe Terra (Nhndci), para a terra,
as matas e os próprios rios que lhes foram roubados.