NÃO ME TOQUE DE ONTEM
E HOJE - MIGUEL ARNILDO GOMES
De um lado
verdes campos cobertos por capim barba de bode, onde sobre o orvalho das lindas
manhas rebanhos e mais rebanhos de emas (ou nhandus) passeavam, onde os
perdigões emitiam contagiantes assovios, procurando fazer dueto ao belo canto
das seriemas. Na copa, no alto dos angicos, gaviões das mais diversas espécies
emitiam ruidosos gritos, atemorizando a belíssima jacutinga, que com seu sonoro
canto saudava o renascer de mais um dia.
Sobre forquilha das
mais variadas aroeiras, caneleiras, erveiras, campuatãs... muitos casais de
Barreiros (João de Barros), arquitetavam suas resistentes casas, usando-se para
isso apenas argila intercalados a uma pequena mescla de palha. O que segundo o
poeta com a porta de esguelha para o norte, para melhor proteger-se do vento
minuano ou chuvas frias, que sopram do quadrante sul durante os meses
hibernais.
No decurso das estações
mais quentes, os vaga-lumes ou pirilampos com suas luzes fosforescentes,
proporcionavam a singeleza nativa, o mais pinturesco painel ao pintar-se a tela
das noites sombreadas, onde corais de rãs quebravam o silencio com a mais
surpreendente orquestra sinfônica que a natureza nos brindou.
A uma milha e meia
da itinerária brasileira para o sul e menos de uma milha para o
oeste, podia ver-se extensas matas cobertas pelas mais diversas arvores nativas,
tornando-se visíveis por entre elas gigantescos pinheiros araucárias, árvore
também símbolo da região. Matas cujo habitat natural, abrigavam
centenas de espécies de pequenos e médios animais silvestres e anfíbios, e
ainda a mais numerosa variedade de pássaros que ao habitar nesta sobejidão, os
papagaios talvez constituíssem como a força mais barulhenta, voando a média
altura e em bandos por demais numerosos, tornando-se incontáveis numa algazarra
inconfundível, como o que implorando para que aquela liberdade jamais viesse a
se extinguir. Nesta circunstancias segundo a tradição precisamente familiar, o
que nos foi transmitido pelos nossos bisavós, avós, pais e que hoje estamos
repassando a nossos filhos e netos, e possivelmente a outras futuras gerações.
Foram décadas de
pesquisa, e a que conclusão cheguei! Que aproximadamente no ano de 1848, isto
é, um pouco antes da virada da primeira para a segunda metade do séc. XIX,
chegaram a esta terra, oriundos da cidade de Ponta Grossa - PR, o casal
Possidônio Ribeiro de Santana Vargas e Plassidina da Rocha Vargas. Ali estava o
sonhador filho homem de Miguel Vargas e Maria Angélica. Adquiriram terras cuja
primeira sede construíram muito próximo, onde situa-se a cidade de Não Me
Toque, na saída para Carazinho. Possidônio e Plassidina vieram acompanhados alem
de filhos ainda crianças, alguns negros escravos, bem como outros peões e
agregados, quando construíram casa, galpões, mangueira de lascão e cochos
cavados a partir de volumosos troncos de árvores, que serviriam para dar sal
aos animais. Esta sede segundo se comentava situava-se a 45 minutos a pé até
chegar ao local onde construiu-se mais tarde a Paróquia Cristo Rei de Não Me
Toque. Nesta querência Possidônio e Plassidina viram crescer os filhos Antônio,
José, Miguel (Varguinha), Pedro (Pedruca), Ambrosina e Ana Maria (Inharinha).
Possidônio foi um dos
primeiros estancieiros a povoar campos nesta região, quando tinha como lindeiro
entre outros, o Capitão Bernardo Antônio de Quadros e Felicidade Maria Xavier,
este casal, a partir 1956, passou a povoar com seus rebanhos, a fazenda Bom
Sucesso, que era sede da Invernada Grande e que situava-se entre os rios
denominado Colorado ou Puitã e Arroio Cotovelo, que também na época denominado
Puitãzinho. A amizade adquirida entre o senhor Possidônio e dona Plassidina com
o casal Bernardo e Felicidade, tornou-se ainda mais ativo, quando os filhos
possivelmente Antonio Ribeiro de Santana Vargas e Maria de Jesus de Quadros
contraíram casamento no início de 1871. Possidônio, pessoa bastante
comunicativa e dotado de alguns conhecimentos escolares, havendo conseguido ao
transcorrer destes anos, cativar belas amizades entre fazendeiros do interior
de Passo Fundo, bem como entre seus peões e alguns nativos remanescentes e
ainda pela maneira amistosa que tratava seus escravos.
Mas foi mais ou menos
nesta época, quando Possidônio julgava que sua paz ainda ia se perpetuar por um
bom tempo, que veio o grande impasse, pois dona Plassidina juntamente com as
duas filhas Ambrosina e Inharinha, já crescidas, começaram a pressioná-lo no sentido
de mudar de residência. Talvez pelo motivo desta fazenda estar situada a uma
razoável distancia de outros fazendeiros, que já se aglomeravam em torno do
futuro arraial de Carazinho, onde a família Vargas já havia adquirido uma gleba
de terras. Como Possidônio já havia contraído uma certa paixão pela sede, que
com tanto amor construíra, por algum tempo ainda conseguiu resistir, mas dado a
insistência continua dos familiares, Possidônio em determinado momento, reuniu
esposa, filhos e principalmente as filhas, quando as ponderou:
- Posso até distribuir
em vida a terra para vocês em outros locais, mas com a seguinte condição, daqui
vocês não me toquem.
Foi a partir de então
que a antiga sede passou a ser chamada pelas filhas Ambrosina e Inharinha
carinhosamente como “Não Me Toque do papai”. Popularizando-se mais tarde
principalmente entre as famílias Martins e Xavier de Quadros, já ligados a
família Quadros por laços de parentesco, como sendo então “Não Me Toque de Seu
Possidônio”. A repercussão foi tão imediata em toda a região, quando tropeiros
oriundos destes rincões, a repontar mulas para a feira de Sorocaba – SP, ao
confrontar-se com colegas tropeiros provenientes de outras paragens,
principalmente peões Birivas, quando descendo de São Paulo ou do Paraná, muitas
vezes se entreveravam aos peões gaúchos em rondas ou pousadas, mas quando
referiam-se ao nome do lugar causava muita admiração e curiosidade entre os
colegas, tornando este nome “Não Me Toque de Seu Possidônio”, conhecido em
muitos rincões da província, bem como entre outros estados.
Comenta-se ainda sem
se saber o dia, mês ou ano mais que foi possivelmente no final da década de
1860 que Possidônio, contrariando a qualquer desejo seu, mudou-se da sede de
Não Me Toque com a família, passando a ser responsável direto, juntamente com a
esposa Plassidina e principalmente Pedro (Pedruca), para formação do Arraial de
Carazinho.
Já no final do séc.
XIX foi criado por visionários na sua maioria descendentes germânicos, muito
próximo aquele local a Colônia do Alto Jaqui. Não Me Toque mesmo deixando de
ser de seu Possidônio jamais deixou de existir, pois este nome continuou a ser
tratado com grande carinho pelos nossos valorosos desbravadores. Ainda durante
os primeiros anos do séc. XX residia na antiga sede uma filha de Possidônio e
Plassidina de nome Ambrosina Vargas, que era casada com major maragato Elesbão
Martins, este filho de José Fidelis Martins e Meringelda Corrêa. Elesbão e
Ambrosina tiveram como filhos talvez entre outros, Ipólito, Amazilia, Dinarte, Antônio,
Pedro, Pedrina, Amélia e Acólia. Acólia casou-se com o poeta e escritor
Clemenciano Barnasque, escritor entre outras importantes obras, “As Efemérides
Riograndenses”, após o casamento Clemenciano e Acólia passaram a residir em São
Sepé. Posteriormente transferindo-se para Porto Alegre.
Mas o acontecimento
que talvez mais entristeceu Elesbão e Ambrosina, fazendo com que vendessem o
restante da fazenda de seu Possidônio que lhes coube por herança e
transferindo-se para Carazinho, foi a questão da filha Amélia, menina moça
ainda tão cheia de sonhos, haver perdido a vida, quando no dia 2 de novembro do
início do séc. XX, data esta consagrada aos mortos, ao transitar pelo interior
do cemitério de Não Me Toque, ostentando um belíssimo conjunto com saia ornamentada
com goma, usando-se para isso além de uma pequena quantidade de amido, também
álcool. Assim, ao passar por algumas velas acesas, foi então a extrovertida
garota, acidentalmente colhida pelas chamas, quando ao destruir suas vestes,
queimando-a totalmente. Acontecido isto, a belíssima e faceira Amélia em
profundo desespero, veio a falecer nas entranhas do aludido cemitério em dia de
finados. Também segundo a tradição nos conta, um atento campeiro ao chegar
naquele momento para também acender velas, mas ao constatar o trágico
acontecimento, tomou o corpo de Amélia completamente queimado e nu,
envolvendo-o em seu luxuoso pala, para efetuar o translado até sua casa onde
ela nascera e passara sua infância.
No dia seguinte, o
corpo da jovem Amélia Vargas Martins, transportado em uma carrocinha, puxada
por uma parelha de cavalos e acompanhadas por muitos cavaleiros e por senhoras
e senhoritas andando a pé, voltava para ser sepultado em outro cemitério, localizado hoje entre as cidade de Não Me Toque e Carazinho.
Foi a partir de quando
Elesbão e Ambrosina já idosos e profundamente desgostosos, transferiram-se
definitivamente para o povoado de Carazinho, passando a residir onde situa-se
hoje a vila Santo Antônio, onde alguns anos depois faleceram.
A Colônia do Alto
Jaqui muito prosperou, conseqüentemente o povoado de Não Me Toque também, com a
emancipação de Carazinho em 24 de janeiro de 1931, passou a integrar este
município na condição de segundo distrito, emancipando-se em 28 de fevereiro de
1955. Assim, tornou-se cidade prospera, hospitaleira, habitada por gente de
diversas origens ou nacionalidades.
Hoje em pleno séc.
XXI, ninguém mais fala que um dia esta querência já foi denominada popularmente
como “Não Me Toque de Seu Possidônio” ou por alguns até como “Não Me Toque do
velho Possidônio”. Os tempos mudaram, mas os rumos continuam sendo os mesmos,
quando a promissora terra e prospera cidade continua ser cada vez mais rica e
hospitaleira, tornando-se cada vez mais Não Me Toque.
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