O
SUSTO DO RUBÉRBO - MIGUEL ARNILDO GOMES
Cruzavam-se os anos quarenta, com o termino da
segunda grande guerra mundial as coisas começaram então a fluir com um pouco
mais de desembaraço. No estremo sul e muito principalmente na região do
Planalto Médio e próspero Alto Jacuí, entre outras regiões, com o fim do ciclo
da madeira, a agricultura começava a se desenvolver agora com maior intensidade.
Também foi nesta década que a lavoura mecanizada começou a dar seus primeiros
passos, ainda que timidamente, mas dentro de um processo gradual, a cada ano
que passava, novos e novos tratores iam surgindo, das mais diversas marcas e
modelos, sem que pudesse se perceber claramente, aos poucos as lavouras de
trigo iam tomando conta dos antigos campos de barba de bode, campos estes, que
por séculos serviram de pastagens, ainda que precariamente, mas servindo de
alimento para muitos rebanhos de bovinos, ovinos, muares e eqüinos.
Mas com o surgimento da mecanização da
lavoura, mesmo engatinhando sempre novidades aos poucos iam acontecendo, como
por exemplo, os fertilizantes para adubar a terra, os arados e grades
niveladoras, as plantadeiras que enterravam as sementes e adubos e demais
utensílios, todos estes chamados implementos agrícolas, que eram arrastados por
um trator que também servia entre outras coisas, para puxar as primeiras
colheitadeiras rebocadas, que inicialmente serviam apenas para ceifar e
debulhar o produto.
Contudo o que
causava maior admiração, era ouvir barulhos e ruídos de máquinas, o que veio
mais decisivamente a revolucionar os nossos campos, pois até então, o único
ronco no campo que cada individuo conhecia, era o berro dos touros, o relincho
dos baguais e jumentos e ainda o ronco dos soturnos bugios em algum capão de
mato.
Paralelo a
estas atividades, na ânsia de também prosperar e buscar riquezas, os mandiocais
alargavam ainda mais suas fronteiras, agora de uma maneira mais decisiva
disputavam seus espaços. A cada ano, os agricultores adquiriam novas variedades
de ramas de mandioca para serem plantadas, quando a colher uma pequena
percentagem era consumida internamente,entre os planteis de bovinos e
principalmente de suínos, mas a grande maioria era consumida pela industria da
farinha, para isso sempre mais tafonas eram construídas, aproveitando-se as
muitas centenas e até milhares de quedas d’água existentes.
Por onde que
se andasse, era comum ouvir-se a distância, ruídos de roda d’água a movimentar,
ralos, prensas, bem como para lavar o produto, que após ser encaminhado para o
forno, se transformaria em farinha. Por isso na época naquelas imediações, não
faltava emprego, que ia desde a aração, plantio, capina e mais tarde arrancação
de mandioca e muito principalmente na industrialização de farinha e ainda a
coleta e secagem de polvilho. Nos intervalos, a rapaziada se distraia
comparecendo nas bodegas ou bolichos, onde não faltava as tradicionais
carteadas de baralho, além de jogo de bochas, onde a grande maioria tinha por
costume deliciar-se com a saborosa aguardente de cana, ou “canha” como era
chamada, onde era servida como até hoje, nos tradicionais copos de vidro,
quando a cada dose era representada como um trago e sempre ao final de cada
rodada ou partida, pedia-se:
-
Por favor, sirva-me mais um trago.
No dia
seguinte ainda de madrugada quando cantava o primeiro galo, já estava a peonada
a postos para mais um dia de trabalho árduo, quando alguns peões, se
encarregavam de carregar a mandioca e transporta-la e para isso em muitas
oportunidades, teriam que suplantar difíceis obstáculos e muito principalmente
atoleiros, trabalho este que se efetivava, da lavoura, até a tafona onde era o
produto industrializado; transporte este que geralmente acontecia através de
enormes carroções, puxados por fieiras ou ternos de bois, onde a junta do coice
era engatada na carroça através de um cabeçalho, depois a junta de ligação,
posteriormente a junta da ponta. A unificação entre estas três cangas,
conseqüentemente entre as três juntas de bois, era efetivada através de
correntes conhecidas como cambão, ou de uma peça muito resistente de couro cru
torcido, a que se dava o nome de tamoeiro, quando os peões cumpriam a árdua
tarefa muitas vezes enfrentando chuvas, sol, geadas e até neves, quando seguiam
agitando a picana estalando o relho e falando com os bois.
Á alguns
quilômetros da localidade que denominavam Barro Preto ou Guabijuzal, morava Júlio Severo, mais conhecido como Ruberbo, rapaz dinâmico e trabalhador, que era filho por adoção de um casal
muito estimado, que residiam já por alguns anos naquelas imediações, onde
Ruberbo se criou trabalhando na agricultura, na plantação, capina e arrancação
de mandiocas e por vezes até em lavouras de arroz d’água, erguendo taipas e
virando leivas através do arado americano, ao final efetuando o corte, trabalho
este que também era praticado manualmente, mas em épocas de farinhada, Rubérbo
sempre dispunha de tempo para o serviço na própria indústria. Quando o verão
cruzava e entrava-se no outono, o povo já se preparava para mais uma safra de
farinha, a qual tinha-se por normas começar no início do mês de maio, trabalho
este que se estenderia até o final de julho, suspendendo-se no inicio de
agosto, por ser considerada já, a fase de rebrotas, mas sempre foi esta fase em
atividade da industria da farinha o período em que os agricultores, tafoneiros
e peões, mais ganhavam dinheiro, o que costumava dizer, mais se niquelava.
Numa
oportunidade já em um final de quaresma, período este que segundo a religiosidade,
considerada por todo o mundo cristão, como os dias de maior devoção, quando
celebra-se o mistério da paixão e morte de Nosso Senhor Jesus Cristo e
posteriormente a vossa Ressurreição. Como naqueles tempos vivia-se mais
intensamente aqueles dias, quinta e sexta-feira da paixão, os agricultores
guardavam então suas ferramentas de trabalho, passando a viver exclusivamente
para Deus, participando da Vias Sacras e ainda do ato de adoração do Cristo
crucificado. Como para muita gente, mesmo respeitando a Deus acima de todas as
coisas, conseguia fazer uma mistura de religiosidade com superstição,
conhecendo aqueles dias, como sendo quinta e sexta feira maior e acreditando
que naquele período, como Jesus estando morto, o demônio se soltava e saia a
noite atacar as pessoas, que por uma necessidade ou outra, precisassem sair.
Em uma certa
sexta feira santa, enquanto centenas de fieis faziam suas penitências, ao
reunir-se em torno das capelas, um grupo de amigos contrariando a todos os
princípios a que se pode imaginar, decidiram em comum acordo procurar uma
carteada, para isso não foi preciso hesitar, logo foi escolhido o local, que
seria a bodega do Agenor, pessoa idônea que procurava tirar o sustento para sua
família, de um pequeno estabelecimento comercial, situado a poucos metros do
local conhecido como; Serrinho do Térezio. De inicio a conversa foi amena
quando falava-se devagar, como que pedindo-se perdão, pelo fato de haverem
procurado uma jogatina naquele dia santo, que na concepção de todos, teria que
ser dedicado apenas a penitencias e orações. Logo em seguida para esquentar o
clima, pediram um trago e a seguir mais um trago de canha, quando neste embalo
o alcezito de nove ou pife começou a correr solto durante toda tarde,
entrando-se noite adentro, tudo isto entre um trago e outro, mas quando
suspenderam o jogo, atendendo-se a um pedido do proprietário e já embalados
pelo efeito do álcool, só ai então pressentiram a grande asneira que haviam
cometido.
De uma hora para outra, voltaram a mudar o tom
de voz e recomeçaram a falar em voz baixa, quando a conversa girava em torno de
planos para os meses seguintes e do trabalho difícil que estaria para
acontecer. Na medida em que os mais eufóricos contavam pausadas histórias,
entre todos os participantes destacava-se Rubérbo, filho adotivo do Seu Timóteo
e de Dona Josefa, que na condição de rapaz esclarecido, falava das proezas que
um dia havia praticado, quando servira em um regimento de cavalaria na cidade
de São Gabriel, quando participara inclusive de manobras militares das mais
importantes, falava ainda das belas moças, que tivera oportunidade de conhecer
na terra dos marechais. Porém quando chegou a meia noite, aconteceu novamente
uma pausa, quando todos foram unânimes em afirmar serem pecadores, quando alguém
entre o grupo ponderou, que com certeza Jesus lhes compreenderia e iria lhes
perdoar, pelo fato de estarem àquela hora em uma mesa de jogatina, naquele dia
tão sagrado e importante para o cristianismo. A seguir despediram-se e cada um
tomou o rumo de seu lar, não havia lua e a noite era por demais escura, Rubérbo
caminhava sozinho na calada da noite e teria obrigatoriamente que cruzar pelo
Guabijuzal, ou Barro Preto, onde havia um pontilhão e ainda uma encruzilhada e
que segundo comentava-se, por pessoas que não costumavam a mentir e que
cruzando por aquele local em noites de sexta feira, haviam se dado de cara com
o lobisomem e que até mesmo o Boi Tatá, já havia sido visto por aquelas
imediações, o que era testemunhado por pessoas da verdade e sérias. Rubérbo
naquele instante, quando apenas o canto do grilo e o coaxar das rãs quebravam o
silêncio da noite, começou a imaginar tudo isso, lembrou ainda que teria que
passar também pelo Angico Torto, onde gaudérios caminhando à noite teriam se
deparado com terríveis assombrações, inclusive o Saci Pererê, já havia saltado
em certa ocasião na garupa de um ginete que por ali cruzava. Quando ainda ao
lembrar, que sua casa estava um pouco distante, mas que deveria confiar no
taco, pois era ele Rubérbo, considerado um recordista em corridas a pé, o que o
tornara famoso desde os tempos de quartel. Primeiro ouviu um berro de touro a
grande distância, quando o rumo parecia ser mais ou menos, o da casa de Seu
Belizário, na encosta do rio, a seguir mais um berro que ele constatou estar já
bem mais próximo, quando o corajoso rapaz, mesmo assim começou a sentir um
arrepio que começava no cangote e na medida em que lhe correndo, pela espinha
dorsal, o mesmo chegava-lhe ao calcanhar. Foi nesta condição então que Rubérbo
não parou para pensar, de um momento para outro passou a desferir violenta
disparada e quanto mais corria, mais o berro se aproximava, a certa altura já
na ânsia de escapar, sentira que o bicho quase lhe pisava no garrão, chegou a
sentir um sopro no pescoço, que só parou quando Rubérbo alcançou o pátio e
entrou varanda adentro. Depois deste susto do Rubérbo, episodio este que se
tornou por demais conhecido, nunca mais alguém ouviu falar por aquelas bandas,
que chiruzada alguma se reunisse nas sextas feiras santas em algum bolicho,
para participar de jogatinas e tomar tragos.
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